Caixa de Ferramentas Bíblicas
Qual é o antídoto para a divisão secular/sagrado? Como ter a certeza de que nossa caixa de ferramentas contém as ferramentas conceituais fundamentadas na Bíblia para cada assunto que encontrarmos? Temos de começar estando completamente convencidos de que há perspectiva bíblica sobre tudo, não apenas sobre assuntos espirituais. O Antigo Testamento nos fala diversas vezes que "o temor do SENHOR é o princípio da sabedoria" (Sl 111.10; Pv 1.7; 9.10; 15.33). De modo semelhante, o Novo Testamento ensina que em Cristo "estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência" (Cl 2.3). Interpretamos estes versículos no sentido de sabedoria espiritual, porém o texto não estabelece limitação ao termo. "A maioria das pessoas tem a tendência de ler estas passagens como se dissessem que o temor do Senhor é o fundamento do conhecimento religioso", escreve Clouser."Mas o fato é que fazem afirmação radical — a afirmação de que, de alguma maneira, todo o conhecimento depende da verdade religiosa."
Esta afirmação é mais fácil de entender quando nos damos conta de que o cristianismo não é único sob este aspecto. Todos os sistemas de crença trabalham do mesmo modo. Como vimos, o que quer que um sistema proponha como auto-existente é, em essência, o que se considera divino. E esse compromisso religioso funciona como o princípio controlador para tudo o que vem depois. O temor de algum "deus" é o princípio de cada sistema de conhecimento proposto.
Assim que entendermos como o primeiro princípio trabalha, fica claro que toda a verdade tem de começar em Deus. A única realidade auto-existente é Deus, e tudo o mais depende dEle para sua origem e existência contínua. Nada existe separado da sua vontade; nada está fora do escopo dos pontos decisivos centrais na história bíblica: a criação, a queda e a redenção.
Criação
A mensagem cristã não começa com "Aceite a Jesus como Salvador", mas com "No princípio, criou Deus os céus e a terra". A Bíblia ensina que Deus é a fonte exclusiva de toda a ordem criada. Nenhum outro deus concorre com Ele; não existe força natural própria; nada recebe sua natureza ou existência de outra fonte. Sua palavra, ou leis, ou ordenanças da criação dão ao mundo ordem e estrutura. A palavra criativa de Deus é a fonte das leis da natureza física que estudamos nas ciências naturais. Também é a fonte das leis da natureza humana — os princípios da moralidade (ética), da justiça (política), do empreendimento criativo (economia), da estética (artes) e até do pensamento claro (lógica). É por isso que Salmos 119.91 declara:"... tudo está a teu serviço" (NVI). Não há assunto, tema, matéria que seja filosófica ou espiritualmente neutra.
Queda
A universalidade da criação é emparelhada pela universalidade da queda. A Bíblia ensina que todas as partes da criação — inclusive nossa mente — foram atingidas na grande rebelião contra o Criador. Os teólogos denominam isso de o efeito "noético" da queda (o efeito sobre a mente), e subverte nossa habilidade de entender o mundo sem a graça regeneradora de Deus. A Bíblia está repleta de avisos de que a idolatria ou a desobediência voluntariosa a Deus torna os humanos "cegos" ou "surdos". Paulo escreve:"... o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho..." (2 Co 4.4) O pecado literalmente entenebreceu o entendimento (Ef 4.18).
Claro que os não-crentes ainda atuam no mundo de Deus, portam a imagem dEle e são sustentados por sua graça comum, fatos que significam que têm a capacidade de descobrir segmentos isolados de conhecimento genuíno. E os cristãos devem acolher com alegria esses insights. Toda a verdade é a verdade de Deus, como diziam os pais da igreja, que também exortavam os cristãos a "saquear os egípcios" (cf. Ex 3.22),apropriando-se do melhor da erudição secular e mostrando como se ajusta de forma mais apropriada a uma cosmovisão bíblica. Pode haver ocasiões em que os cristãos estejam enganados em algum ponto, e os não-crentes, certos. Não obstante, os sistemas globais de pensamento formados pelos não-crentes serão falsos, pois se o sistema não é construído sobre a verdade bíblica, então o será sobre outro princípio básico. Até as verdades serão vistas pela lente distorcida de uma falsa cosmovisão. Em conseqüência disso, a abordagem cristã em qualquer campo precisa ser crítica e construtiva. Não podemos apenas tomar os resultados da erudição secular como se fosse território espiritualmente neutro, descoberto por pessoas cujas mentes estão de todo abertas e objetivas, ou seja, como se a queda nunca tivesse acontecido.
Redenção
Por fim, a redenção é tão abrangente quanto a criação e a queda. Deus não salva apenas nossa alma, deixando nossa mente a funcionar sozinha. Ele resgata a pessoa inteira. A conversão tem o propósito de dar nova direção a nossos pensamentos, emoções, vontade e hábitos. Paulo nos exorta a oferecer nosso "eu" a Deus como "sacrifício vivo", de forma a não sermos conformados com este mundo, mas sermos transformados pela renovação de nossa mente (Rm 12.1,2). Quando fomos remidos, todas as coisas se fizeram novas (2 Co 5.17). Deus promete nos dar "um coração novo" e "um espírito novo" (Ez 36.26), avivando nosso caráter com vida nova.
Isto explica por que a Bíblia trata o pecado, primeiramente, como questão de termos nos afastado de Deus para servir a outros deuses, e, em segundo plano, destacando uma lista de comportamentos imorais específicos. O primeiro mandamento é, afinal de contas, o primeiro — os demais vêm somente depois que estivermos certos sobre quem ou o que estamos adorando. E é por isso que a redenção consiste, de maneira fundamental, em expulsar nossos ídolos mentais para nos voltarmos ao verdadeiro Deus. E quando fazemos isso, experimentamos o seu poder transformador que renova cada aspecto de nossa vida. Falar sobre uma cosmovisão cristã é outro modo de dizer que, quando somos redimidos, toda nossa perspectiva de vida é recentralizada em Deus e reconstruída em sua verdade revelada.
Trecho do livro de PEARCY, Nancy.
Verdade Absoluta: Libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Tradução de Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. 526 p. (p. 48-51)