sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ídolo do Iluminismo


Os secularistas reforçam  a mentalidade de divisão (secular/sagrado), afirmando que a teoria deles não espelha qualquer filosofia em particular, que é apenas "o modo como todas as pessoas racionais pensam". Dessa forma, promovem suas próprias opiniões como imparciais e racionais, adequadas à esfera pública, enquanto denunciam as opiniões religiosas como parciais ou preconceituosas. Esta tática tem intimidado os cristãos, fazendo com que eles fiquem na defensiva quanto à nossa crença, atitude que, por sua vez, abala nossa eficácia na cultura mais ampla.
O equívoco jaz em pensar que haja teorias imparciais ou neutras, que não são afetadas por qualquer suposição religiosa e filosófica. Sabemos, claro, que no reino sagrado, cada grupo tem seus próprios pontos de vista religiosos — cristão, judaico, muçulmano, da Nova Era e assim por diante. Todavia, no reino secular, é comum pensar que todos temos acesso a conhecimento neutro, no qual julga-se que os valores religiosos e filosóficos não interferem.
A ironia é que este ideal é produto de uma tradição filosófica em particular. A noção que advoga que é possível esvaziar a mente de todas as pressuposições e comprometimentos religiosos para obter verdades nuas e cruas da "razão" procede do Iluminismo. René Descartes, considerado o primeiro filósofo moderno, expressou-o vigorosamente no século XVII. O modo de encontrar a verdade, disse Descartes, era tirar da mente tudo que se possa duvidar até alcançarmos um fundamento de verdades firmes e asseguradas que não se possa duvidar. Segundo pensava, ele conseguira atingir esse fundamento infalível em seu famoso cogito, ergo sum: "Penso, logo existo". Afinal, mesmo quando estamos duvidando de tudo, ainda estamos pensando; portanto, a coisa mais segura que podemos saber é a existência da questão do pensamento.
A idéia que emergiu foi que, pelo método da dúvida sistemática, a mente humana ou a Razão (com a letra inicial em maiúsculo) pode atingir a objetividade e certeza divinas. Em um de meus cursos de filosofia na faculdade, o professor gostava de dizer que a objetividade é "o modo como Deus vê as coisas". Embora não fosse crente, ele queria dizer que a verdadeira objetividade só pode ser atingida por um Ser que transcenda este mundo e saiba tudo conforme de fato é.A insolência do Iluminismo acha-se no pensamento de que a Razão era esse poder transcendente que provia conhecimento infalível. A Razão tornou-se nada menos que um ídolo, assumindo o lugar de Deus como fonte da Verdade absoluta.
Ironicamente, o próprio Descartes era católico devoto; tinha tanta certeza de que Deus lhe revelara a lógica irrefutável do cogito, ergo sum que prometeu fazer uma peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Loreto, Itália — promessa que cumpriu alguns anos depois. Esse filósofo é exemplo trágico de como a pessoa pode ser cristã sincera e, mesmo assim, promover uma filosofia que com certeza não é cristã. Descartes ajudou a estabelecer uma forma de racionalismo que tratou a Razão não apenas como a capacidade humana de pensar de modo racional, mas como a fonte infalível e autônoma da verdade. A Razão foi vista como depósito de verdades independente de religião ou filosofia.

Trecho do livro de PEARCY, Nancy. Verdade Absoluta: Libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Tradução de Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. 526 p. (p. 42-43)

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