Vejamos, então, o contexto de onde essa expressão foi retirada da Bíblia (1 Samuel 24.6).
Deus governava o povo e Israel e se comunicava com eles através de líderes e sacerdotes. Resumindo bem, desde Abrão, passando depois por Moisés e Josué, chegamos até Eli e Samuel. Quando Samuel já estava bem velho, seria natural que a sua tarefa passasse para seus filhos. “Mas os filhos dele não andaram em seus caminhos. Eles se tornaram gananciosos, aceitaram suborno e perverteram a justiça” (1 Samuel 8:3). Por isso, “as autoridades de Israel reuniram-se e foram falar com Samuel” (1 Samuel 8:4). Com que intenção? Aqui vai ocorrer uma mudança na forma de governo. O povo estava deixando de aceitar um patriarca/sacerdote/profeta/juiz como representante de um governo mais direto de Deus para pedir um rei humano. Samuel não gostou da ideia e orou. A resposta de Deus foi: "Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo; não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei” (1 Samuel 8:7). E, a seguir, Deus pede para que Samuel transmita ao povo as implicações dessa nova modalidade, ou seja, como o rei exigiria direitos sobre o povo. Apesar de tudo, o povo insistiu e quis um rei, pois queriam ser como os outros povos (sugiro a leitura de todo o capítulo 8 de 1 Samuel).
É assim que chegamos a Saul (1 Samuel 9). Antes de lançarmos mão do texto de 1 Samuel 24. 6 para defender pastores ou qualquer líder gospel da atualidade deveríamos compreender melhor o contexto bíblico implicado aqui. Saul não seria ungido como pastor ou um mero líder religioso. Lemos em 1 Samuel 10.1 que Samuel o ungiu príncipe ou rei sobre Israel e em 1 Samuel 11.15 que “todo o povo foi a Gilgal e proclamou Saul como rei na presença do Senhor”. É verdade que os primeiros reis acumulavam as antigas funções proféticas junto com as de governante, mas, não é o caso hoje. E, continuava a existência de profetas, os quais, inclusive, os conhecidos de Saul se admiraram ao vê-lo entre eles (1 Sm 10.10-12). Samuel também continuou em seu posto de sacerdote como Eli antes dele.
Quando Saul comete um grave erro (1 Samuel 13) o fato de ser “o ungido do Senhor” não impede a Samuel de criticá-lo e dizer a verdade: “Você agiu como tolo, desobedecendo ao mandamento que o Senhor seu Deus lhe deu (...). Agora seu reinado não permanecerá” (1 Samuel 13: 13-14). Veja também 1 Samuel 15.19, 22-23. E, assim conclui Samuel a respeito de Saul: “Não voltarei com você. Você rejeitou a palavra do Senhor, e o Senhor o rejeitou como rei de Israel!” (1 Samuel 15:26). E é assim que o Senhor abandona Saul e agora estava com Davi (1 Samuel 18:12).
Pra finalizar, o Saul que encontramos no capítulo 24 de 1 Samuel já é um renegado, um rebelde que mata sacerdotes de Deus (1 Samuel 22) e persegue o verdadeiro ungido do momento, Davi (1 Samuel 24. 1, 2). Foi aí que Saul foi surpreendido por Davi que resolveu ser misericordioso. Mas, a sua fala de ‘não tocar no ungido do Senhor’ não se referia a deixar que Saul permanecesse livre para fazer o que bem entendesse como rei e profeta. Pois isso ele nem era mais. E, sim em que “Davi repreendeu os soldados e não permitiu que atacassem Saul” (1 Samuel 24:7). Ou seja, Davi estava poupando Saul de ser executado.
Portanto, vamos procurar com zelo interpretar as Escrituras no seu contexto mais amplo para não recortarmos trechos do texto que apenas servem de pretexto aos que desejam ludibriar. Saul sequer se autodeclarou rei ou profeta. Foi escolhido e ungido por outros. Nem foi o próprio Saul quem lançou mão da frase ‘não toque no ungido do Senhor’ para se defender (assim como que legitimamente o poderiam ter feito, então, Jesus, João Batista, Paulo e tantos outros que foram martirizados, mas nunca o fizeram). Quando líderes religiosos hoje se autoproclama ungidos do Senhor e deliberadamente agem de má fé enganando o povo, o mínimo que deveríamos fazer é lembrar a palavra de Jesus que encontramos em Mateus 7. 21-23.
Teólogo
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